quarta-feira, 21 de maio de 2008

O encontro de Renato Andrade com Tião Carreiro

Se a história do pacto com o Capiroto é verídica, o encontro se deu nas profundezas do inferno, mas se como disse Riobaldo: “O diabo não há!...Existe é homem humano,” pode que a topada tenha sido em outro lugar. O certo é que houve o encontro, e posso contar...
Renato chegou com o semblante sereno, descalço, com seu chapeuzinho de palha e a viola a tiracolo com as fitas amarradas na cravelha. Tião Carreiro estava sentado num tamborete de jacarandá, bonachão; já era de casa. Renato sentou de lado na banqueta que já o esperava e cruzou as pernas.
Tião Carreiro começou o ponteio, ao que o povo começou a rodear; Renato Andrade ia retrucando num dueto que só podia mesmo ser coisa de Deus, ou do Demo.
Coisa bonita demais. Uma multidão já se encontrava assentada, no que parecia ser um grande vale, numa baixada, onde o som das violas reverberava de um tal modo que microfone algum reproduziria o mesmo efeito. Eram milhares de olhos fincados nas violas, com as vistas embaçadas de lágrimas, milhares de ouvidos ouvindo e milhares de peitos apertados a ponto de explodir, diante daquele espetáculo singular que encantava, deixando extasiados os que ali se abancavam.
As cordas das violas vibravam com tanta intensidade que até zuniam e o movimento das mãos dos violeiros hipnotizava a quem olhava, tamanha a rapidez e destreza dos rasqueados e ponteios.
Do pagode pro corta-jaca, da querumana pro cateretê, da moda de viola pro cururu, o som era o mais belo e encantador já ouvido em todos os tempos.
Negócio mesmo do outro mundo. Sublime.
O encontro de Renato Andrade e Tião Carreiro nas paragens de um vale com aquele ajuntamento de gente ao redor. Coisa mesma de ser, de Deus ou da Capeta.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Eugénio de Andrade

O LUGAR DA CASA

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia


Eugénio de Andrade foi o pseudónimo de José Fontinhas Rato poeta português nascido em 19 de Janeiro de 1923 em Póvoa de Atalaia, Fundão.
Os seus poemas, geralmente curtos, mas de grande densidade, e aparentemente simples, privilegiam a plenitude da vida e dos sentidos, despertando em quem os lê, uma grande excitação poética, um gosto de amor que fica, após cada leitura.
Coisas de quem amava profundamente a poesia.
Faleceu a 13 de Junho de 2005, no Porto, após uma doença neurológica prolongada.

Obrigado Eugénio de Andrade!