sábado, 18 de setembro de 2010

Há exatos dez anos

Somente aos vinte anos de idade, e já cursando a Faculdade de Direito, em Juiz de Fora, a poesia pegou-me pelas mãos para mudar completamente a minha vida.
Depois do colegial e de um ano de cursinho pré-vestibular, estudando literatura de forma branda e sem a devida paixão, lendo apenas apostilas, foi aos 20 que o amor pela poesia surgiu de forma avassaladora, graças, basicamente, a dois Manoeis (1 com “o” e 1 com “u”), um Carlos e a meus dois irmãos:
Morávamos em um apartamento, em Juiz de Fora, eu, Juninho, meu irmão mais velho, cursando a mesma Faculdade de Direito e Marco Túlio, o caçula, fazendo cursinho para ingressar na Faculdade de Medicina.
No dia 18/09/2000, ou seja, há exatos dez anos, eu e Juninho compramos, de meia, um livro chamado “Estrela da Vida Inteira” do Manuel Bandeira. Comecei a lê-lo e encontrei um poema assim:

Porquinho-da-Índia

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

Ao terminar de ler o poema, foi como se tivesse ocorrido uma explosão em minha cabeça. Fiquei pensando em como alguém poderia escrever algo tão simples e tão grandioso como aquilo que eu acabara de ler. Tão lindo, tão perturbador! Fiquei alguns meses lendo e remoendo aquelas palavras e, de certa forma, inconscientemente, descobrindo o que realmente era a poesia.
Dois meses depois, no dia 03 de novembro, conversando com o Marco Túlio, este reclamava da vida de estudante de cursinho e, pegando um livro, me deu um exemplo:
- Veja, pra que eu tenho que ler um livro deste, para fazer Faculdade de Medicina?
Curioso, peguei o livro e li o título: “O livro das ignorãnças”...
Abri-o e li isto:

VII

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia, que é voz de poetas, que é a voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar o delírio.


Outra explosão! Agora acompanhada de um espanto e de um torpor que até hoje me arrebatam quando leio Manoel de Barros.
Seguia os dias lendo com freqüência esses dois poetas, quando mais um livro, que meu irmão ganhara para os estudos, chegou-me às mãos, com as mesmas reclamações de outrora: “Sentimento do mundo”...
Já conhecia, logicamente, o autor, devido aos estudos no colegial. Afinal quem nunca ouvira falar de Carlos Drummond de Andrade?
Abri o livro e descobri a grandiosidade da poesia desse homem ao ler, principalmente, isto:

Confidência do itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Meus irmãos nunca mais leram poesias.
Eu nunca mais parei de ler poesias.
Nunca mais deixei de viver a poesia.

.

7 comentários:

Fabrício disse...

Só sendo alfabetizado nas letras do pra sempre, no liceu do Santo Antônio, na várzea do Turvo Grande.
Parabéns Júlio, poeta do Turvo.

Fabrício,
do sem fim do campo branco...

Fabrício disse...

Só sendo alfabetizado nas letras do pra sempre, no liceu do Santo Antônio, na várzea do Turvo Grande.
Parabéns Júlio, poeta do Turvo.

Fabrício,
do sem fim do campo branco...

Marcela Meireles disse...

Como disse Adélia Prado,quando nos deparamos com a poesia, estamos diante de um milagre, que é o fenômeno da poesia, é por isso que nos emocionamos quando a lemos, pois ela é muito grande, muito maior que nós. Então, diante dela, nós não temos nada a fazer, é ficar desarmado, é aproveitar, se deixar tomar pela graça e bendizer o poeta como veículo disso, ele é somente o portador, ele é "BENDITO".
Quando ouvi essa frase, Júlio, e li seu texto,penso que foi essa a "perturbação" que você sentiu, um sentimento estranho,ou melhor, atordoador, que surge em nós quando percebemos a grandeza existente em versos tão triviais.

Marcela Meireles disse...

Para Ferreira Gular, o poema a seguir é um dos maiores da Língua Portuguesa:
ONDE HÁ POUCO FALÁVAMOS

É um antigo
piano, foi
de alguma avó, morta
em outro século.

E ele toca e ele chora e ele canta
sozinho,
mas recusa raivoso filtrar o mínimo
acorde, se o fere
mão de moça presente.

Ai piano enguiçado, Jesus!
Sua gente está morta,
seu prazer sepultado,
seu destino cumprido,
e uma tecla
põe-se a bater, cruel, em hora espessa de sono.
É um rato?
O vento?
Descemos a escada, olhamos apavorados
a forma escura, e cessa o seu lamento.

Mas esquecemos. O dia perdoa.
Nossa vontade é amar, o piano cabe
em nosso amor. Pobre piano, o tempo
aqui passou, dedos se acumularam
no verniz roído. Floresta de dedos,
montes de música e valsas e murmúrios
e sandálias de outro mundo em chãos nublados.
Respeitemos seus fantasmas, paz aos velhos.
Amor aos velhos. Canta, piano, embora rouco:
ele estronda. A poeira profusa salta,
e aranhas, seres de asa e pus, ignóbeis,
circulam por entre a matéria sarcástica, irredutível.
Assim nosso carinho
encontra nele o fel, e se resigna.

Uma parede marca a rua
e a casa. É toda proteção,
docilidade, afago. Uma parede
se encosta em nós, e ao vacilante ajuda,
ao tonto, ao cego. Do outro lado é a noite,
o medo imemorial, os inspetores
da penitenciária, os caçadores, os vulpinos.
Mas a casa é um amor. Que paz nos móveis.
Uma cadeira se renova ao meu desejo.
A lã, o tapete, o liso. As coisas plácidas
e confiantes. A casa vive.
Confio em cada tábua. Ora, sucede
que um incubo perturba
nossa modesta, profunda confidencia.

É irmão do corvo, mas faltam-lhe palavras,
busto e humour. Uma dolência rígida,
o reumatismo de noites imperiais, irritação
de não ser mais um piano, ante o poético sentido da palavra,
e tudo que deixam mudanças,
viagens, afinadores,
experimento de jovens,
brilho fácil de rapsódia,
outra vez mudanças,
golpes de ar, madeira bichada,
tudo que é morte de piano e o faz sinistro, inadaptável,
meio grotesco também, nada piedoso.

Uma família, como explicar? Pessoas, animais,
objetos, modo de dobrar o Unho, gosto
de usar este raio de sol e não aquele, certo copo e não outro,
a coleção de retratos, também alguns livros,
cartas, costumes, jeito de olhar, feitio de cabeça,
antipatias e inclinações infalíveis: uma família,
bem sei, mas e esse piano?

Está no fundo
da casa, por baixo
da zona sensível, muito
por baixo do sangue.

Está por cima do teto, mais alto
que a palmeira, mais alto
que o terraço, mais alto
que a cólera, a astúcia, o alarme.

Cortaremos o piano
em mil fragmentos de unha?
Sepultaremos o piano
no jardim?
Como Aníbal o jogaremos
ao mar?
Piano, piano, deixa de amofinar!
No mundo, tamanho peso
de angústia
e você, girafa, tentando.

Resta-nos a esperança
(como na insônia temos a de amanhecer)
que um dia se mude, sem noticia,
clandestino, escarninho, vingativo,
pesado,
que nos abandone
e deserto fique esse lugar de sombra
onde hoje impera. Sempre imperará?

(É um antigo piano, foi
de alguma dona, hoje
sem dedos, sem queixo, sem
música na fria mansão.
Um pedaço de velha, um resto
de cova, meu Deus, nesta sala
onde ainda há pouco falávamos.)

Carlos Drummond de Andrade

Marcela Meireles disse...

Para Ferreira Gular, o poema a seguir é um dos maiores da Língua Portuguesa:
ONDE HÁ POUCO FALÁVAMOS

É um antigo
piano, foi
de alguma avó, morta
em outro século.

E ele toca e ele chora e ele canta
sozinho,
mas recusa raivoso filtrar o mínimo
acorde, se o fere
mão de moça presente.

Ai piano enguiçado, Jesus!
Sua gente está morta,
seu prazer sepultado,
seu destino cumprido,
e uma tecla
põe-se a bater, cruel, em hora espessa de sono.
É um rato?
O vento?
Descemos a escada, olhamos apavorados
a forma escura, e cessa o seu lamento.

Mas esquecemos. O dia perdoa.
Nossa vontade é amar, o piano cabe
em nosso amor. Pobre piano, o tempo
aqui passou, dedos se acumularam
no verniz roído. Floresta de dedos,
montes de música e valsas e murmúrios
e sandálias de outro mundo em chãos nublados.
Respeitemos seus fantasmas, paz aos velhos.
Amor aos velhos. Canta, piano, embora rouco:
ele estronda. A poeira profusa salta,
e aranhas, seres de asa e pus, ignóbeis,
circulam por entre a matéria sarcástica, irredutível.
Assim nosso carinho
encontra nele o fel, e se resigna.

Uma parede marca a rua
e a casa. É toda proteção,
docilidade, afago. Uma parede
se encosta em nós, e ao vacilante ajuda,
ao tonto, ao cego. Do outro lado é a noite,
o medo imemorial, os inspetores
da penitenciária, os caçadores, os vulpinos.
Mas a casa é um amor. Que paz nos móveis.
Uma cadeira se renova ao meu desejo.
A lã, o tapete, o liso. As coisas plácidas
e confiantes. A casa vive.
Confio em cada tábua. Ora, sucede
que um incubo perturba
nossa modesta, profunda confidencia.

É irmão do corvo, mas faltam-lhe palavras,
busto e humour. Uma dolência rígida,
o reumatismo de noites imperiais, irritação
de não ser mais um piano, ante o poético sentido da palavra,
e tudo que deixam mudanças,
viagens, afinadores,
experimento de jovens,
brilho fácil de rapsódia,
outra vez mudanças,
golpes de ar, madeira bichada,
tudo que é morte de piano e o faz sinistro, inadaptável,
meio grotesco também, nada piedoso.

Uma família, como explicar? Pessoas, animais,
objetos, modo de dobrar o Unho, gosto
de usar este raio de sol e não aquele, certo copo e não outro,
a coleção de retratos, também alguns livros,
cartas, costumes, jeito de olhar, feitio de cabeça,
antipatias e inclinações infalíveis: uma família,
bem sei, mas e esse piano?

Está no fundo
da casa, por baixo
da zona sensível, muito
por baixo do sangue.

Está por cima do teto, mais alto
que a palmeira, mais alto
que o terraço, mais alto
que a cólera, a astúcia, o alarme.

Cortaremos o piano
em mil fragmentos de unha?
Sepultaremos o piano
no jardim?
Como Aníbal o jogaremos
ao mar?
Piano, piano, deixa de amofinar!
No mundo, tamanho peso
de angústia
e você, girafa, tentando.

Resta-nos a esperança
(como na insônia temos a de amanhecer)
que um dia se mude, sem noticia,
clandestino, escarninho, vingativo,
pesado,
que nos abandone
e deserto fique esse lugar de sombra
onde hoje impera. Sempre imperará?

(É um antigo piano, foi
de alguma dona, hoje
sem dedos, sem queixo, sem
música na fria mansão.
Um pedaço de velha, um resto
de cova, meu Deus, nesta sala
onde ainda há pouco falávamos.)

Carlos Drummond de Andrade

Júlio César Meireles de Andrade disse...

Fabrício,
gostei da escola.
Obrigado.

Júlio César Meireles de Andrade disse...

Marcela,
é exatamente isso que sentimos e que Adélia Prado tão bem exemplificou.
Ela é brilhante.

Não conhecia esse poema do Drummond.
Que coisa mais linda! Gullar tem toda a razão. Ele também é brilhante.
fui lendo e imaginando a casa da minha vó, o piano, as paredes, enfim...
Essa é magia e a grandiosidade de poemas que nos tocam.
Obrigado.