quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

João Guimarães Rosa - III

A esposa já dera sumiço na coleção completa dos livros de Guimarães Rosa, artigos e ensaios sobre o autor e mais dois ou três volumes de Grande Sertão: Veredas que, de quando em quando, achava escondidos pela casa. Ela foi a primeira a perceber a doença. O marido era compulsivo.
No começo, achava normal uma pessoa passar as férias inteiras dentro de casa lendo Guimarães Rosa noite e dia, só parando quando caía no sono, com o livro aberto em cima do peito.
Mais tarde, começou a estranhar quando o marido, gozando de boa saúde, pedia licença no serviço para tratar de alguma doença e, como nas férias, passava todos os dias da licença em casa lendo Guimarães Rosa.
A situação se agravara. As licenças já não eram suficientes e o marido pediu demissão.
Passava todos os dias, sem exceção, lendo Guimarães Rosa.
Acordava às cinco horas da manhã e, trancado num quartinho, ficava até a hora do almoço lendo. Quando chegava à mesa, deixava o livro aberto ao lado do prato de comida sem mesmo perder a linha do parágrafo que lia.
Não se barbeava mais, pois não podia “perder tempo”. O banho, quando o tomava, era de menos de cinco minutos, marcados no relógio.
A doença era séria.
Procurou médicos e especialistas e, com o tempo, foi conseguindo controlar a compulsão do marido, não sem antes apagar todos os vestígios de Guimarães Rosa que havia em casa.
Sem “combustível” para a compulsão, o marido ia melhorando. Já se alimentava direito, fazia a barba e tomava banho diariamente, como nos tempos de trabalho.
Quando percebia algo diferente, sua reação era sempre a mesma: se o marido ficava algumas horas sumido, a busca era completa; dava uma geral na casa e pronto, lá estava “Primeiras Estórias” escondido debaixo de alguns tacos soltos no chão da sala.
Outra vez, percebendo que o marido já não se barbeava há alguns dias, mais uma busca e inacreditável: “No Urubuquaquá no Pinhém” envolto em um saco plástico dentro da caixinha de água da descarga do banheiro da área de serviço.
Já não sabia o que fazer e, procurando sempre ajuda de parentes e amigos, chegou à conclusão de que uma internação seria necessária.
Onde encontrar uma clínica para aquele tipo de tratamento? Alcoólicos Anônimos? Toxicômanos? Hospício? Alguma clínica especializada?
Nunca ouvira falar de qualquer outro problema sequer parecido com o seu.
Foi quando descobriu um médico-psiquiatra que passara pelo mesmo problema e conseguira se curar, só que o autor era Machado de Assis. As consultas eram de graça e diárias, devido ao interesse do médico, um aplicado estudioso das compulsões, pelo caso em questão.
O marido voltava bem das consultas e passava o resto do dia sem falar em Guimarães Rosa. Com quase dois meses de tratamento intensivo, a cura se anunciava.
Já passava nas portas das livrarias sem qualquer impulso de entrar e liquidar o estoque de Guimarães Rosa. Já conseguia até ter “Tutaméia” nas mãos e nem sequer abri-lo. “Sagarana” foi mais difícil, mas conseguiu ficar dez minutos com um volume antigo nas mãos e não dar sequer uma folheada, nem ao menos para ver o ano da edição. “Manuelzão e Miguilim”, na palma da mão, com seus dedos tocando a orelha do livro... Foi difícil, mas superou. É lógico que todas essas experiências eram realizadas no consultório do médico-psiquiatra e agora amigo, que após a cura, pôde vir a ter em seu consultório uma farta biblioteca, com exceção, é claro, de Machado de Assis.
Mas havia ainda, o grande desafio: “Grande Sertão: Veredas.”
Esse sim, seria a vitória, a tão esperada cura.
Mais um dia sem Guimarães Rosa. Era assim que conseguia controlar a doença.
Mais um dia sem Guimarães Rosa.
O tratamento avançava e, finalmente, “Grande Sertão: Veredas” por mais de uma hora nas mãos. O olhar fixo na capa com as ilustrações de Poty. As mãos trêmulas. O suor a escorrer-lhe no rosto. Duas ameaças de abrir o livro, gloriosamente contidas a tempo. Sim, era a cura, afirmava o médico. Estava finalmente curado.
Curado, mas condenado a nunca mais se encantar com as estórias de “um chamado João”. Era o preço a se pagar...
Só mais um dia sem João Guimarães Rosa...


(Júlio César Meireles de Andrade)

Um comentário:

Carrie, a Estranha disse...

Que lindo, Primo!